quinta-feira, 4 de junho de 2009

Memórias de infância: Óleo de fígado de bacalhau e outras 'curas'

Lembram-se do sabor do óleo de fígado de bacalhau? Intragável. Tão mau que deve ter deixado traumas em gerações de crianças que franziam a testa, tapavam o nariz e fechavam os olhos com aquela mistela acastanhada que nos obrigavam a beber.
Era, apenas, um dos muitos "remédios" tradicionais a que ninguém escapava. Até havia frascos recebidos na escola primária e destinados a serem bebidos em casa.
O óleo de fígado de bacalhau servia para abrir o apetite e era um complemento alimentar. Hoje já vendem o produto em pastilhas ou com sabor disfarçado por outros mais gostosos. É um bom estimulante do apetite, ajuda a regular os processos metabólicos sendo uma boa solução para obtenção de energia.
A tortura do óleo de fígado de bacalhau de outrora era apenas um dos muitos tormentos por que passaram os que hoje, como eu, entram na ternura dos quarenta. Havia todo o tipo de infusões, gemadas, chás e papas, para resolver as mais variadas maleitas. Da falta de apetite, das lombrigas, do "bucho virado" ou do "mau olhado".
Além de recorrerem aos médicos, que eram poucos e muito mal distribuídos pela Região, as mães eram fiéis aos ensinamentos dos "antigos", no que de bom e mau tinham. Do azeite louro para beber e para besuntar em feridas, da colher de mel fervida no fogão pela manhã.
Se uma criança não comia, tinha dores de barriga e começava a ficar amarela, o diagnóstico era rápido: bucho virado.
Sim, porque esta maleita estava, quase sempre, associada a uma muito maior: o mau olhado. Só tirado por uns poderes sobrenaturais e psicadélicos, detidos por vizinhos e até familiares que permitiam, com um simples olhar de cobiça, abalar a saúde, os estudos, o trabalho e muito mais.
Começava por ser feito o diagnóstico, o que muitas vezes acontecia em casa. Deitar pingos de azeite num copo de água era um teste de que não havia recurso. Se as gotas de azeite unissem, era certo que havia um "camadão de olhado".
Depois do diagnóstico vinha a terapia. Com um ramo de alecrim, umas cruzes e outros apetrechos, cuja função era insondável, o curandeiro começava uma cantiga para tirar o "mau olhado".
Curar do "mau olhado" era (e ainda é) uma arte, um dom que poucos tinham e de que alguns viviam.
Curioso é que não se ouvia uma voz contrária a estas práticas que não dependiam de condição social ou instrução. O que era preciso era "curar".
E muito havia para tratar, num tempo em que se comiam os frutos directamente das árvores e todo o tipo de porcarias. Uvas com remédio, nêsperas verdes e frutos silvestres faziam parte da dieta dos mais pequenos.
Além destas curas milagrosas, havia toda uma série de tratamentos, cada um mais curioso que o outro. As crianças que tinham sarampo - a quase totalidade -, além de ficarem na cama sem saber bem porquê, viam as janelas do seu quarto... forradas a vermelho.
Para a papeira, a solução era o tradicional lenço, amarado no topo da cabeça e que servia para segurar o queixo.
Até para as pequenas feridas se sugeria uma valente mijadela.
Havia até quem aconselhasse a colocação de "terra fininha" e teias de aranha sobre feridas. Escupo (cuspo) para impinjas.
A cinza também era usada em alguns casos. Principalmente para irritações da pele, muitas vezes associada a outras porcarias. Até caca de galinha, dar desterro a objectos pessoais depois de rezas e colocar miúdos descalços em pedras frias serenadas era prática. Para a pieira ou para outras doenças respiratórias como a asma.
Além das terapias, havia toda uma série de recomendações para evitar doenças. A mais comum até tinha algo de poético. Apontar para as estrelas condenava a criança ao aparecimento de verrugas nas mãos.

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